a massificação dos desejos ...
Há dias assim…
não sei se já aconteceu a alguém, tal qual me acontece a mim...
acordar e não ter nada para dizer, quando é habitual estarmos sempre a falar de qualquer coisa...
hoje aconteceu que eu até queria falar, mas recusava-me a escrever, como se ao escrever os meus pensamentos se perturbassem e as imagens se sentissem espiadas com letras que as podiam denunciar...
passei então diante de mim imagens da minha infância, o mais atrás que pude eu recordei de mim e dos outros que tinham perante mim responsabilidades e amores que nunca mais encontrei em alguém...
senti de repente a pureza de ser criança e a certeza daquele tempo, o tempo que nos embrulhava e que ficava nos sentidos...
senti a ausência de conhecimento no que diz respeito do saber como se cresce...
senti que naquele tempo, sentia que a vida e o meu tamanho, ficariam sempre assim...
creio que era o desejo secreto de ser sempre criança, ou talvez, a ausência do conhecimento de como se pode crescer e dos problemas que arrasta esse mesmo crescimento, que hoje eu já sei o que é ...
foi interessante, poder recuar no tempo, e não ser interrompido por nada nem por ninguém...
dei por mim a perguntar como eram os meses de Março daquele tempo?... e lembrei já mais adiante os preparativos da Páscoa, a azafama das igrejas e a maneira prazeirosa com que idealizávamos o enfeite das flores...
lembrei como estávamos sempre aflitas a polir os cálices do sacrário, as patenas e os turíbulos para o incenso, que o padre fazia voar com mestria e que nos encantava o olhar...
dei por mim a lembrar o gosto das roscas que se ofereciam naquele tempo e que simbolizavam a madrinha, que no meu caso eram oferecidas pela superiora do convento onde habitava...
gostos de outros tempos, gestos que o próprio tempo engoliu e que ninguém registou, ficando apenas na nossa memória, e aí sim, ficarão sem o direito de serem removidos ou visitados por curiosos que não os puderam experimentar...
procurei o Sol... não estava para nascer e a esta hora a que escrevo, se não nasceu, já não nasce...
o dia está cinzento, mas eu pude experimentar o sol que brilhava naqueles dias e o frio que fazia ao mesmo tempo... dias de fome de amor, mas de concretização de calendário exigente e obrigatório...
dei então por mim… e tomei consciência de que já estava há mais de uma hora a viajar no tempo e achei maravilhoso… o registo de memórias… mesmo que não sejam as memórias de muita abundância de carinho ou de pão, mesmo que sejam de solidão á mistura… mas são as nossas memórias, onde podemos ir de vez enquanto, porque lá também estão aqueles que já não fazem parte do nosso dia a dia, mas que ausentes deste mundo, permanecem em outro lugar, não muito distante do nosso, e que nos observam , quem sabe agasalhando o desejo secreto de se reunirem connosco outra vez … um dia...
há dias assim, de fotografar a alma, e de entrar dentro dela… nesse labirinto, onde os gestos, os cheiros, os sons, são apenas nossos, e nos dizem que foram eles que nos deram a certeza de que vale a pena continuar...
voltei á realidade deste dia, porque me esperam, novas , úteis e urgentes decisões...
bendito o tempo e o Senhor do tempo...
um abraço e um dia de boas e gratas memórias para todos...
lasalete