casa de cartão...
A nossa memória é surpreendente... os cheiros, as cores , os sons... trazem à nossa alma lembranças que de certeza falam de momentos que pela sua diferença ,ficam para sempre a marcar o nosso espaço emocional.
ouvi a melodia ... as lágrimas emolduraram meus olhos... e de repente plasmei em meu olhar a negra mais simpática do Coração da Cidade ... há quanto tempo...
chamava-se Esperança... onde estará neste momento? , já não falo com ela vai para três anos, mas recordo de vez enquanto o seu olhar , a sua forma crioula de falar e da expressão vigorosa a sensual do seu corpo...
contava com severa nostalgia, que tinha sido a mulher mais cobiçada do musseque mas o seu coração balançou por um branco que não a largava...
Esperança deu-lhe 5 filhos e por alturas do 25 de Abril, a liberdade de Esperança estava prestes a chegar ao fim... deixou o sol dourado de Angola, o cheiro a cravo e a canela e veio para conhecer Portugal... mas as trigueiras do Minho falaram mais alto...
Esperança não consegue adapartar-se à vida de Portugal... e o senhor Branco, logo a troca por uma branca roliça e deslavada como ela lhe chama...
o álcool não lhe deu hipótese de ficar com alguma segurança com os filhos de quem tem muita saudade... o senhor branco ainda a ajudou durante algum tempo , mas sempre a empurrou para longe dos filhos, o que a colocava cada vez mais, na dependência dessa doença fatal, que ela tomou como agasalho para cobrir a sua solidão.
os filhos formaram-se e ela dizia com lágrimas nos olhos... eu tenho um filho engenheiro... mas tem vergonha de mim...
a nossa Esperança , era muito divertida... fazia parte das mulheres sem abrigo que são hospedes certas das ruas do Porto... quase diariamente levava um cobertor para se cobrir do frio e permanecia na instituição até à hora de encerramento, depois saía a falar baixinho num dialecto que só a alma dela entendia...
um dia entrou mais cedo para a refeição da noite... então ria a bom rir e repetia... ontem fintei um polícia... e passou a contar a história , que para ela , representava a vida na concorrência mais simpática com a dita justiça , que não consente que aqueles que são injustamente colocados na rua, nela adormeçam, ainda que consentidamente pela inoperância dos sucessivos governos...
então... um dia, a Esperança da nossa história, na esperança de encontrar o mesmo lugar de sempre para adormecer , deparou-se no local habitual, com uma caixa de cartão de considerável tamanho e não pensou duas vezes... uma casa de cartão deste tamanho à minha espera? ! ... pega no cobertor que a instituição lhe distribuiu e há que entrar sorrateira para dentro da caixa...
estava a Esperança já no seu primeiro sono, quando o polícia habitual passa perto da caixa de cartão e de pontapé aqui e acolá chuta a caixa, que imobilizada pelo peso da Esperança não se move nem um pouco... eu até podia ter gritado ... dizia ela ... mas se gritasse o polícia mandava-me sair de casa ... e riu a bandeiras despregadas ... dormi nela a noite toda ... logo os lixeiros vão levá-la , mas hoje ainda deu para dormir...
e o polícia ? - perguntei a rir também ... foi-se embora a resmungar ...que os lixeiros não sabiam limpar a rua ... mas nem sequer percebeu que eu estava lá dentro, senão ... oi... oi... bem tinha dormido ao frio.
e assim a Esperança, fintou o polícia ... em silêncio, sem dizer ai, para que apenas por uma noite se pudesse abrigar dos olhos dos outros e dormir fantasiada de proprietária dum apartamento de cartão.
depois de contar a história saiu... cantava divertida... olhava de soslaio para ver se tínhamos gostado da história e afastou-se cantando ... morena de Angola que leva o chocalho agarrado na canela, não sei se ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela... e foi a cantar rua abaixo, quem sabe se na esperança de encontrar outra casa de cartão...
dramas da rua duma cidade que acorda e adormece fingindo que tudo está bem.. resta-nos a esperança...
lasalete