tão fragéis... meu Deus...
sem que propositem , perante as imagens, a piedade instala-se dentro de nós...
estes olhos, vencem o medo, mas a ternura que inspiram, abala o coração de qualquer ser humano...
como são frágeis , os seres desprotegidos pela vida... os que nada possuem para além do olhar mais doce que Deus lhes deu...
hoje fiquei parada, olhando a televisão...escutei mais que uma vez...
12 mil crianças institucionalizadas...
as minhas lembranças revoltas confundiram-se com as palavras a cores que a televisão fazia ecoar...
voltei de repente para dentro de mim... já era assim quando ainda era criança... não era de ninguém... era do mundo...
que medo meu Deus... que fragilidade ...
que dor experimentei, quando aquelas portas enormes se fecharam atrás de mim e aquela figura feminina me olhava do cimo dessa montanha dura com dois olhos enormes e a voz mais autoritária que alguma vez ouvira...
eu só conhecia o mundo, onde não havia de comer, nem lençóis para dormir , nem brinquedos para brincar... mas tinha os olhos da minha mãe...
e agora... encerrada naquele convento...
Vairão ... isto para mim ficava no finalzinho do mundo... talvez do outro lado da casa da minha mãe e muito perto do inferno...
de repente descobri que não habitava só naquele local... outras mulheres igualmente altas e feias vieram ao meu encontro... despiram-me, deram-me banho, cortaram-me o cabelo e levaram o cheiro da minha mãe... sofri demais para me encontrar... quando me deitaram tremi toda a noite... e nas noites seguintes não consegui encontrar motivo para que a minha mãe se tivesse esquecido de mim naquele lugar...
e assim permaneci longos anos... até ser maior e descobrir que tinha que ser assim...
tanto se escreve sobre as crianças dentro das instituições e tão pouco se sabe do que efectivamente se passa lá dentro...
agradeço por ter sido retirada à pobreza... mas não era a mim que deviam ter castigado... eu com cinco anos nunca tinha feito mal a ninguém... eu não tinha culpa de os homens serem egoístas e fazerem dos mais pobres escravos permanentes... a minha mãe trabalhava muito e chorava demais porque não tinha dinheiro... nada tinha para nos dar...
hoje sempre que vejo uma mulher a pedir ajuda o faço em nome da minha mãe...
mas ainda me fere quando se fala das crianças armazenadas em instituições de caridade... por muito diferente que seja o mundo de hoje a dor continua igual e a pergunta permanece ... porque estou aqui?... que crime cometi ?... porque não tenho direito a um lar como as outras crianças?... um dia perguntei a Deus ... Pai do céu , porque não gostas de mim e me deixas-te abandonada aqui dentro?...
lembro-.me que por esta altura do ano as alunas internadas recebiam durante as visitas mensais dos seus familiares, laranjas e algumas goluseimas que comiam sofregamente ...
eu dificilmente recebia visitas... mas no dia das visitas das outras meninas, eu não recebia laranjas, então sem ninguém ver, depois de todos se retirarem juntava as cascas espalhadas pelo chão e cheirava-as para me lembrar do cheiro do outro lado do muro... na esperança de recuperar o cheiro da minha mãe...
no mesmo local existia uma grande ameixoeira, cujo tronco centenário tinha moldado um grande buraco, onde me escondia a chorar com saudades da minha mãe e com medo de nunca mais sair daquele espaço...
é necessário entender a mente de quem está guardado nestes espaços, que por muito carinho que ofereçam, representam para quem lá reside, um misto de conforto e de angústia difícil de arrancar...
a fragilidade de quem nada tem, dói-me profundamente e sempre tento atenuar essa dor... mas, quando os números me trazem a enormidade do abandono, do colo que tanta falta faz... então aí... meu Deus, como dói...
tanta construção ao alto, tanta estrada maravilhosa, já conseguimos o espaço, tanta tecnologia de ponta que nos deixa de boca aberta e ainda não conseguimos tomar conta das nossas crianças, nem amamos os animais...
que mundo é este meu Deus ... tão frágeis que nós somos...
lasalete ...