ecos da solidão...
porque se inventou o dia dos namorados?...
nem todos podem amar-se e, afinal são tão difíceis de definir os ecos da solidão...
hoje, olhei de perto os olhos dos que se aproximaram para recolher alimentos que a solidariedade humana distribuiu sem perceber a quem...
olhei os rostos de muitas cores e percebi no éter a solidão oculta, compernas , braços e coração...
os olhares cruzados sobre uma sopa quente e a ausência de calor humano, apenas cifrável enquanto permanecem naquele espaço que se chama Coração...
borboleteando entre os homens , as mulheres sem abrigo, passeiam-se indiferentes, tal qual eles a um suposto acasalamento...
ninguém troca olhares amorosos e parece que até se confundem num executado bailado de indecifráveis figuras...
olhei-os, pensando ... -que será da intimidade destes seres humanos ?, que não têm entre eles maneiras mais bonitas e mais amorosas mas vivem aparentemente uma relação muito física de sobrevivência dolorosa, mas emocionalmente descontrolados ao ponto de ferirem se preciso for...
...entre os muitos ali presentos, se contavam também aqueles a quem chamo " administradores", sem ofensa para ninguém , mas aos quais quando me é permitido recuso ajuda, por explorarem mulheres indefesas que a noite sonega ao dia e deturpa nos seus mais leais sentimentos para com a vida humana...
estas mulheres nunca chegam a ser as namoradas de ninguém, mas ficam na retaguarda dos sentimentos humanos , à mercê das mentes doentias que não sabem namorar, dos predadores que na noite se ocultam para devorar os corpos esqueléticos destas mulheres até dizer... B A S T A ....
sem dentes, magras, cambaleando, ainda lhes é possível perceber traços duma beleza oculta que o tempo fez derreter como de cera se tratasse, por suposto holocausto que a desumanização ergue em praça pública...
mas, se pudermos observar, lentamente os sorrisos começam a definir e é possível ver os ecos da solidão...
pude verificar isso mesmo num episódio simpático que hoje aconteceu no domínio privado das sensações únicas que podemos experimentar com as pessoas sem abrigo...
ontem, um jovem , por certo o mais desordeiro do nosso espaço de acção solidária, pediu papel para desenhar a carvão...
o certo é que, desde que a Livraria AMA abriu, muitos são os utentes que por lá passam ...
ou para orar no auditório e ficarem um pouco em paz, ou para verificar os livros nas prateleiras e ler um pouquinho, ou até mesmo para conversar e revelar seus gostos no domínio da arte...
o nosso jovem utente, vinha visitar-nos desde que abrimos e formulou o desejo de se ligar à arte , porque... dizia ele... tinha muito jeito para desenho...
hoje, pela hora de almoço , oferecemos ao nosso jovem um caderno A3 e o respectivo carvão com a laca fixante...
pelas 4 horas da tarde, aparece ele muito simpático, de alma lavada, com um sorriso de orelha a orelha, cheio de felicidade , a exibir os primeiros traços duma paisagem que não é de todo perto da cidade do Porto, mas possivelmente duma província alentejana...
os montes rasos e extensos , o poço num deserto imenso, a palhota isolada e uma igreja isolada,compunham a paisagem que o jovem oferece à nossa apreciação...
mas, o que mais chama a atenção, são as árvores dispersas sem folhagem e ressequidas ...
uma voluntária lhe diz...-faltam as folhas... ele responde...-as minhas árvores não têm folhas eu sinto-as assim... o desenho ainda não está completo , mas as árvores já estão...
pediu-me de seguida que lhe desse umas paisagens para ele ver e conseguir copiar, porque a ideia dele não tinha registos de nada e ele tinha dificuldade em desenhar, porque a mente dele estava deserta...
olhei aquele jovem e percebi na sua resposta os ecos da solidão que ele carrega nos seus 25 longos anos...
apenas a rua e o desespero namoraram aquela alma, que sempre se transmite em agonia e provocação...
os ecos de solidão também são a violência no quotidiano , a dor extravasada a golpes que a mente humana desfere nos mais próximos e mais ajustáveis ao nosso horroroso mal estar...
os ecos da solidão passam de nós para os outros , porque o amor se faz ausente...
hoje, a esta hora tenho a certeza que o nosso jovem está feliz , amando o caderno repleto de folhas brancas e oferecidas, que a sua mente vai desenhar, porque lhe demos cópia de paisagens sublimes, de mar e sol, pedra e verde, que Deus pintou para todos nós...
tenho a certeza que está feliz, pela afirmação que lhe surgiu:
- hoje ao desenhar tive hora e meia de felicidade...
há quem diga que os namorados não têm fome, porque se alimentam de beijos e de amor... mas os mais pobres e esquecidos desse painel de enamoramento, também podem sonhar...
a arte não nos deixa sós e permite sermos felizes em dia de namorados...
a arte com coração é tão fácil de acontecer...
mas não terminamos por aqui...
recebemos no nosso espaço de leitura, um livro já em segunda edição de Júlio Allen , também ele utente do Coração da Cidade a quem não é possível atribuir a poesia directa e acutilante do seu livro que se devora num ai ...
ser pobre e ser artista, os atributos certos aos ecos da solidão dos quais fazem e fizeram parte tantos artistas deste mundo...
de descoberta em descoberta, a arte anda fazendo das suas por aí...
fazendo ouvir os ecos da solidão que maioria não sabe escutar...
lasalete ...